O caderno pasmado

sirat al bunduqiyyah

23 novembro 2007

arcano vinte e três

Eles falam no leito. As imagens falam também, porque querem contar a mesma história que todos os corações tentam contar sem palavras.

Não falam com a boca, mas com a misteriosa linguagem das peles quando eram transparentes e quase líquidas; suspensas como uma árvore silenciosa que mergulha as suas raízes numa terra tão antiga que nos seus primórdios os homens eram ainda peixes à procura do ar da água.

Pega no baralho e mistura.


– Quero pôr a lua sob o nosso tecto – diz – para a verem da rua, e escutar do alto desta torre os comboios azuis na noite compartilhada.


A voz é ouvida, enquanto, uma após outra, as cartas serpeiam, e o encantamento continua.


– No início o mundo era plano. Depois cresceu até atingir o tamanho desta flor – aponta o desenho dos lençóis. – O mundo era tudo – murmura –: a água e as estrelas, o cálice e a mulher, o rio da vida e um esquecimento.

Uma flor sozinha – responde a outra voz –


- Sim, mas com todas as cores, um arco-íris em pétalas, e em cada pétala uma história. Olha para esta!


Os olhos pousam-se nesta nova carta que apresenta duas figuras. A luz do quarto apenas faz destacar as cores mais brilhantes. Tudo é possível então.


Roçam os seus dedos na superfície. O calor, a dançar devagarinho, incha agora, como um novo fôlego, a mensagem. São três sóis quentes: um, no céu; os outros dois, gémeos que foram diabos atados, socorrendo-se como macho e fêmea, como pai e filho, mãe e filha, para atravessar a corrente do rio, atingem a sua libertação sobre a branca areia... Um outro começo.


Não é suficiente. É preciso temperança. É preciso um anjo. E a nova carta fica em equilíbrio sobre o ventre nu. As mãos rodeiam-no. Sopram os lábios, e um ar morno passa de uma caneca para a outra, de pássaro azul para pássaro por nascer.


Com os olhos fechados, as outras mãos baralham mais uma vez, e duas cartas caem de cada lado. E os olhos que vêem falam:


– Dois chapéus infinitos, força mágica que agora quer fazer própria a ferocidade que contém sempre qualquer nova vida.


E os olhos que ainda não se abrem dizem:


– Novo mundo, nova flor, nova carta...


E a lua acende-se no quarto, e as carruagens do comboio soam pertinho.

18 novembro 2007

Ana


Antoine d’Agata, 2006

16 novembro 2007

nuvem fechada


Quando a minha nuvem fechada está sobre a tua nuvem fechada,
às vezes falta bem pouco para que a tua à minha se junte


vontade sob vontade
milagre que não apanhamos

ao certo
tudo voa

e todos ficamos à espera
para marinharnos na passarola



11 novembro 2007

inacabável Man Ray


Coat Stand,1921

O fotógrafo

A vida no quartel está feita de fragmentos brancos e pretos. Instantâneos que ficam na memória para romper uma solidão de homens afastados dos seus lares. Vão para a cor, sim, mas a solidão permanece…

A namorada que dança, a mãe que vendeu o amor, a família que esqueceu a data, todos à espera deles e eles que não encontram o mesmo lugar. Somente lembranças brancas e pretas…

A casa sozinha, vazia. A rua para berrar, bêbedo. As fotografias reveladas, como única realidade para regressar ou não…

Ao voltarem falta um nome na noite.



Resenha-ficção da curta metragem O Nome e o N.I.M ( d'Inês Oliveira,2003)

01 novembro 2007

sacerdotisa


A Priestess, John William Godward (1893)

Vermundo e Marbranca

O ar da tarde ardia. O feiticeiro falava com as aves, que ascendiam puxadas pelo fogo exalado daquela terra seca. Somente uma delas desceu para escutar a voz do Vermundo. Passou tão perto da lua que das suas asas ficaram prendidas fitas prateadas que cegaram os olhos do mago. A sua voz continuou a sussurrar as palavras até que sentiu na sua face queimada o suave bater da ave. Então calou e foi Marbranca quem sibilou as palavras mais transparentes. Voz de ave, presságio do céu.

As pálpebras fizeram-se luz e as asas mãos que afagaram os lábios ainda possuídos de Vermundo. Marbranca, ave mágica, trespassou com um voo imóvel o peito arrebatado até deixar no centro a semente duma flor. Depois, o silêncio do sono.

A chuva empapou a terra e os corpos. Fez brotar o azul dumas pétalas, os espinhos doces do caule. Durante nove noites as raízes prenderam profundas, fazendo dos dois um só solo fértil, onde começar a vagarosa conquista do ar.

Marbranca foi a paciência e a espera, Vermundo a ânsia secreta da lua. Juntos gestaram uma vida feita de estaçoẽs, que tocava tudo, que abraçava tudo. O pranto e o riso. O gozo e a estilha. Mas nunca mais o ar abrasou.