arcano vinte e três
Não falam com a boca, mas com a misteriosa linguagem das peles quando eram transparentes e quase líquidas; suspensas como uma árvore silenciosa que mergulha as suas raízes numa terra tão antiga que nos seus primórdios os homens eram ainda peixes à procura do ar da água.
Pega no baralho e mistura.
– Quero pôr a lua sob o nosso tecto – diz – para a verem da rua, e escutar do alto desta torre os comboios azuis na noite compartilhada.
A voz é ouvida, enquanto, uma após outra, as cartas serpeiam, e o encantamento continua.
– No início o mundo era plano. Depois cresceu até atingir o tamanho desta flor – aponta o desenho dos lençóis. – O mundo era tudo – murmura –: a água e as estrelas, o cálice e a mulher, o rio da vida e um esquecimento.
Uma flor sozinha – responde a outra voz –
- Sim, mas com todas as cores, um arco-íris em pétalas, e em cada pétala uma história. Olha para esta!
Os olhos pousam-se nesta nova carta que apresenta duas figuras. A luz do quarto apenas faz destacar as cores mais brilhantes. Tudo é possível então.
Roçam os seus dedos na superfície. O calor, a dançar devagarinho, incha agora, como um novo fôlego, a mensagem. São três sóis quentes: um, no céu; os outros dois, gémeos que foram diabos atados, socorrendo-se como macho e fêmea, como pai e filho, mãe e filha, para atravessar a corrente do rio, atingem a sua libertação sobre a branca areia... Um outro começo.
Não é suficiente. É preciso temperança. É preciso um anjo. E a nova carta fica em equilíbrio sobre o ventre nu. As mãos rodeiam-no. Sopram os lábios, e um ar morno passa de uma caneca para a outra, de pássaro azul para pássaro por nascer.
Com os olhos fechados, as outras mãos baralham mais uma vez, e duas cartas caem de cada lado. E os olhos que vêem falam:
– Dois chapéus infinitos, força mágica que agora quer fazer própria a ferocidade que contém sempre qualquer nova vida.
E os olhos que ainda não se abrem dizem:
– Novo mundo, nova flor, nova carta...
E a lua acende-se no quarto, e as carruagens do comboio soam pertinho.